Artigo

DOR E GLÓRIA - ENTRANDO EM CENA
ALMODÓVAR

Dor e Glória [2019] é um universo infinito de referências e histórias. É um mergulho em Almodóvar, mesmo que o cineasta afirme não ser uma auto- biografia. Nesse filme, entramos em um baú de memórias e, talvez um pouco tendenciosos a pensar que se trata de um retrato de Pedro Almodóvar, entramos em uma convergência entre os enredos de seus filmes e passagens da sua própria história. Não podemos afirmar serem verídicas ou apenas a percepção de uma espectadora encantada por sua obra.

Mas a obra de Almodóvar é algo visceral, que se conecta com quem a assiste e peço licença para assim colocar aqui o que extraí desse filme.

No início, a proposta era uma análise da relação do filme com o design de interiores e, sim, existem diversas, incontáveis referências que me fizeram vibrar ( vou aqui falar em primeira pessoa... e falo da minha experiência). Mas é impossível falar dessa película e citar suas referências, objetos de arte e de design sem falar das linhas de conexão que eles criaram ao longo do filme. O design aqui se apresenta como parte do elenco.

O filme retrata a vida e Salvador Mallo, um cineasta consolidado, mas que, ao longo da história, mostra suas dores e memórias. Transitando entre o presente e o passado, é possivel assistir a pitacos da vida de Almodóvar narrados em uma história fictícia e envolvente.

Fugindo da cronologia, vou revisitar os pontos que me chamaram atenção.

Assim como Pedro, Salvador se muda com sua mãe para outra cidade quando está com 8/9 anos de idade. Não, Almodóvar nunca morou em uma das cavernas mostradas no filme, mas a correlação se apresenta com a mudança, a presença forte de sua mãe, o fato de ter estudado em um seminário e a relação com suas vizinhas. Fato que ele relata em cena, que recorda uma conversa com sua mãe, em que aponta que a pessoa em que ele se transformou se deve muito ao fato dessa vivência, rodeada de mulheres.

As cenas na casa da infância de Salvador são maravilhosas (para o espectador) e embebidas em referências arquitetônicas. O susto de sua mãe ao se mudar para uma casa subterrânea é abafado pelas paredes rústicas e pela luz entrando pelas grades e atingindo o piso de ladrilhos desgastados, extremamente lúdicos sob o olhar de uma arquiteta. E vamos, ao longo do filme, vendo essa casa se reestruturar pela vontade de sua mãe de ocupar o espaço e transformar a caverna em um lar, com a ajuda de Eduardo.

A passagem pela estação no momento da mudança é um quadro de texturas e cores!

Sempre que adentramos às lembranças de Salvador somos levados de volta ao seu universo atual, um apartamento moderno e colorido em Madri que, apesar de todas as suas cores, estampas e artes assinadas, se apresenta com uma penumbra que reflete as dores do protagonista, físicas e emocionais.

O apartamento é, por vezes, relacionado a um museu por seus visitantes, que recebem como afirmação que toda aquela arte se transformou na companhia de Salvador, que, mesmo envolvido em uma melancolia e depressão, expressa sua identidade e história através de tudo que compõe seu lar.

E é nesse universo que encontramos a maior parte da identificação entre Almodóvar e Salvador, já que o cenário foi elaborado de acordo com a casa do cineasta, trazendo seus móveis, suas obras de artes, livros e objetos para a personagem. Os elementos não se encontram milimetricamente posicionados como no apartamento de Almodóvar, mas estão ali, trazendo nuances da sua realidade para a tela.

Calma! Vou passar por esses detalhes do apartamento. Mas, antes, só mais um pouco sobre esse enredo!

Enquanto assistia a cena do monólogo de Alberto no teatro, marcada pelo vermelho e azul, que conta a história biográfica de Salvador sobre seu relacionamento, fiz duas conexões distintas.

Uma está na similaridade entre histórias secundárias de dois filmes: ‘Dor e Glória’ e “Fale com Ela”. Salvador e Federico passam maior parte de seu relacionamento viajando, fugindo de Madri, para manter Federico longe do Dragão (heroína), e isso é similar a história contada por Marco Zuluaga em “Fale com ela” sobre seu passado.

A Argentina é muito presente nas obras de Almodóvar e não seria diferente nesta, tão pessoal.

Em “Tudo sobre minha mãe”, a protagonista é uma argentina, que vive na Espanha e faz referências à política do país durante o filme (em uma fala rápida sobre a prisão de Videla).

E em Dor e Glória? Vamos lá, é uma conexão remota... mas, como já disse, os filmes de Almodóvar são abertos a interpretações.

Na cozinha de Salvador, é possível ver um quadro da artista Maruja Mallo, sim o mesmo sobrenome de Salvador. Esse quadro já foi referenciado à Almodóvar como um de seus grandes desejos, não alcançados, e que, aqui, está realizado com o fato de pertencer a Salvador. Maruja Mallo é uma artista espanhola que se exilou na Argentina quando eclodiu a Guerra Civil da Espanha.

Tá ok! Mas, além do fato de sua obra estar exposta na cozinha e em cenas marcantes do filme, qual o nosso ponto?

Quando Federico retorna e se reencontra com Salvador, ele relata que se mudou para Argentina, onde reconstruiu sua vida, longe da heroína. A história de Federico e a da autora do quadro “El Racimo de Uvas” se assemelham, em suas duas maneiras de exílio, mesmo que por motivos diferentes. E se assemelham, também, pelo simbolismo de desejo que representam: o primeiro tão desejado por Salvador e o segundo tão desejado por Almodóvar.

Estamos aqui abertos à divagações, não estamos?

Uma coisa que me chamou muita atenção foram as cortinas da casa de Salvador, suas cores, em tecido brilhante que rementem às cortinas de tiras na casa de sua mãe nas cavernas. Algo como um símbolo das suas conquistas, atrelado a suas raízes e referências.

A partir de agora, vamos adentrar o universo de Salvador e, por assim dizer, de Almodóvar, com referências com forte assinatura.

Ao passar pela porta do apartamento da Rua Paseo Del Pintor Rosales, encontramos uma galeria de arte e design. Mas, que não está ali apenas para exibição, as peças se combinam e escrevem uma identidade.

A cozinha com azulejos azuis, armários vermelhos, uma geladeira repleta de imãs, iluminação fria e a mais forte da casa, abrigam a obra de Maruja Mallo, a torradeira e chaleira Smeg para Dolce&Gabbana e a xícara e pires da Hermès.

Hermès nos leva até a mesa de jantar, que identifiquei como uma Saarinen, com cadeiras Fjord de Patrícia Urquiola, designer que também assina a porta de vidro que divide os ambientes.

A cena entre Federico e Salvador é salientada pela forma e cores da poltrona 637Utrecht, de Gerrit Rietveld, tendo ao fundo a obra de arte “Artista Viendo un Libro de Arte” de Guillermo Pérez Villalta.

A estante atrás da mesa de trabalho de Salvador, por sinal uma La Basilica de Mario Bellini, comporta livros com diversos temas em que podemos identificar a presença de Pedro Almodóvar: Gaudí, Manolo Blahnik, Mr. Ans Mrs. Hollywood – entre outros - que representam a conexão entre o cineasta com design, a moda e a antiga escola de cinema.

O apartamento de Salvador carrega o peso de seus dias atuais, mas tem memórias irreverentes de outras épocas como “Strawberry Bearbrick Bears”, colaboração entre Clot, Levi’s e Medicom Toys. Mostrando que o Kitsch e a Pop Art se apresenta e se enquadra em diferentes cenários, e conta muito bem uma história.

Selecionamos aqui algumas das peças do apartamento de Salvador.

Enfim, é um filme que transita entre o vermelho, azul, com nuances de verde (ao assistir, você encontra essa paleta com as maçãs verdes na cozinha, sofá e almofadas, ou com a toalha de rosto no banheiro), entre a penumbra dos dias atuais e a luz que adentra a caverna dos tempos de infância. E tudo isso se comunica e se une, em um ato final: a pintura de Eduardo!